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sábado, 20 de junho de 2020

O QUE É ÓDIO E COMO ELE OPERA EM NÓS

                                                                                           Arnaldo Chagas

Com o advento das redes sociais, nós ampliamos nossa capacidade de odiar, o ódio se banalizou. através delas, destilamos nosso veneno a tudo e a todos que nos contrariam (alguém diria: mas também aumentamos nossa capacidade de amar, sim, pode ser!), porém, aqui neste vídeo nosso foco será o ódio).

1.   Definindo o ódio

O ódio é um afeto humano. É um estado afetivo que pode também ser compreendido como paixão, no sentido tradicional do termo “pathos” caracterizado por um estado de transbordamento das emoções, de sentimentos intensos e incontroláveis, capaz de alterar o estado de espírito, o pensamento e o comportamento humano.

O ódio, enquanto afeto emocional, opera no ser humano, revelando  a existência de uma dimensão de psíquica de destruição que pode ter como algo o Eu e o objeto (Jeammet, 2005. Este estado de espírito, pode ser traduzido como uma “reação projetiva”, qualificada como: aversiva, repulsiva, hostil, portanto, carrega uma conotação sempre negativa.

 

2.      A origem do ódio e como ele opera no ser humano

Para a psicanálise, o ódio é um afeto primordial que opera na constituição do sujeito psíquico. Ele tem origem e começa a se desenvolver já na fase inicial da vida da criança.

Este estado emocional pode ser identificado, por exemplo, quando a criança, ataca tudo aquilo que se revela como obstáculo, que a impede de alcançar algo que deseja intensamente.

O infans, antes de se transformar em criança propriamente, ocasião que ele reconhece o outro, é movido por instintos primários. Os outros, nesse momento inicial, se apresentam como objetos parciais (o primeiro objeto que é apresentado a criança, é o seio da mãe). O bebê introjeta aspectos do seio materno, que formam o núcleo do supereu. Esses objetos parciais, são fontes, não só de satisfação, mas também de intensa angústia. portando, é um momento em que a criança vivencia uma “ambivalência de sentimentos aterradora" entre (o que Melaine Klein chamou de) seio bom e o seio mau. Nesse momento, há uma por parte da criança, uma importante necessidade oral que é gratificada ou frustrada.

Klein, apresenta os mecanismos de introjeção e projeção, que são fundamentais para o desenvolvimento do "eu" e para estabelecer a relação entre ódio e amor. Aqui estamos diante das contradições entre estados afetivos que se constituem como elementos primários das paixões.

O seio como objeto bom, é projetado na fantasia da criança, como objeto ideal (como produto de desejo e de gratificação ilimitada), daí, conserva no eu: libido e amor. Já o seio como objeto mau, é projetado como frustrante, devorador, ameaçador, perigoso. Nesse caso, é projetado sentimentos de perseguição, angústia e de aniquilamento, conservando no eu: ódio, agressividade, inveja, destrutividade.

Freud mostra, através dos processos de identificação infantil, que já encontramos sentimentos de ambivalência e de hostilidade na criança em relação a seus primeiros objetos amorosos, seus pais. No caso do menino, o pai, por exemplo, de início é colocado como seu ideal, na sequência, se transforma obstáculo para o acesso dele a mãe. Se antes se identificava com o pai como modelo, agora sente ciúmes, hostilidade, aversão, ódio do pai, porque ele está sendo considerado seu adversário, seu oponente. No decorrer do complexo de édipo, percebemos claramente os sentimentos de amor e ódio, operando na criança. O objeto odiado e o objeto amado é incorporado ao Eu, logo, amor e ódio carregamos conosco a vida toda.[1]

Em “As pulsões e seus destinos” (1915/2010f), Freud, pela primeira vez, relacionou o ódio ao narcisismo. O ódio passou a ser compreendido como uma experiência primordial do ser humano diante da frustração das exigências pulsionais e de um objeto que estimula e exige trabalho do aparelho psíquico. Se, por um lado, o objeto nutrirá o bebê, suprindo-lhe as necessidades fisiológicas, por outro, ele será vivido como um intruso e diferente ao Eu/prazer. Temos, assim, um paradoxo: o ódio surge do contato com o objeto que, ao mesmo tempo, conserva o Eu e é estranho a ele (Menezes, 2001).

Em suma, a capacidade de odiar é um desdobramento saudável da agressividade primária. Alcançada certa integração, começa-se a estabelecer a distinção entre Eu e outro.  A relação entre o Eu e o outro considerando o ódio, é o que vamos ver resumidamente a seguir.

 

3.   Eu (ódio e) Outro

Freud nos mostrou, em “Psicologia das Massas e análise do eu” (1921), que em nossa vida psíquica, um “outro entre em consideração de maneira bem regular, seja como modelo, objeto, ajudante e adversário”. Com essas palavras, Freud faz alusão à questão da história do sujeito e de suas identificações, sobretudo, durante a primeira infância, fase da vida em que a relação com o outro. É fundamental para nossa constituição enquanto sujeitos. Assim, ódio e amor são dois afetos estruturados desde as primeiras interações estabelecidas com os outros e que permanecem durante toda a vida e com os quais precisamos apreender a lidar, considerando tais relações.

Destarte, a forma como lidamos com ódio, com o amor, está diretamente relacionada com o nosso imaginário, nossas fantasias nosso grau de percepção da realidade e, sobretudo, com nossa história pessoal singular, em termos de relações primárias com os outros pontos de nossa psique atravessada, modelada é trabalhada pelos outros, por isso somos desde o início os seres, não são individuais, mas sociais.

Ao considerar a alteridade na relação com o outro, nos deparamos com conflitos, acordos é desacordos. Assim, precisamos interagir, dialogar em realizar trocas constantemente, pois outro “funciona” em nossa vida, como exposto anteriormente, como mentor, auxiliar e/ou como oponente. A partir disso, o que está em jogo, são as relações de solidariedade e de hostilidade estabelecidas em nossas interações. Nesse caso, tratando-se de grupos, podemos agir juntos e em solidariedade em torno de um projeto comum ou entrar em rivalidade. Em vista disso, não é diferente a nós, ele sempre nos provocará, em termos de identificação e de vínculos libidinal, reações de amor, solidariedade, atração e/ou hostilidade, ódio ou aversão. Não há saída possível quanto a isso e precisamos enfrentar tais fenômenos absolutamente humanos. A forma de lidarmos com o ódio e com o amor mostra muito quem somos realmente. Amor e ódio, são “representados” por projeções do eu no outro. Com frequência e de diferentes modos, expressamos nossos sentimentos em nossas interações com o outro, sobretudo, em termos de reação projetiva.

Em certa medida podemos afirmar que a raiva apresenta uma dimensão menos crua e visceral, visto que, se trata de uma expressão da frustração da satisfação de desejo, já quanto ao ódio, o Eu, ao sentir-se ameaçado, num extremo, sente a necessidade de destruir a fonte ameaçadora.

Em síntese, podemos perceber que o outro é apresentado a criança, desde o início, como algo "bom" (positivo) ou "mau" (negativo).  Essa condição, é fundamental para a constituição do sujeito humano, parece paradoxal, mas se não sentimos ódio, como poderíamos sentir amor? um afeto, está, de algum modo, ligado ao outro, por isso, em termos de paixão, quem muito ama pode muito odiar.  há uma linha tênue entre ódio e amor.

O outro, sempre esteve e estará envolvido em nossa vida, não há como abdicar dele. amamos no outro, o que sentimos que é bom para nós e odiamos, o que sentimos que é ruim. na verdade, o que estamos fazendo, é projetar no outro nossos sentimentos (me espelho no outro que mostra a mim aquilo que sou). logo, o ódio é um estado emocional interno ao sujeito e que pode ser projeto para o mundo exterior - é uma reação emocional, como disse no início, ao “objeto" do ódio. A reação do sujeito ao outro, do tipo paranoica e persecutória, é revelada quando os outros, se apresentam a nós, como obstáculo, como oponente, adversário ou até como inimigo.  

Caso o objeto do ódio, que se constitui como imagem na psique daquele que odeia, fosse destruído, desapareceria completamente? Na verdade, não. Ele se manteria da mesma forma, isto porque o ódio é um afeto interno ao ser humano. Ele não corresponde, exatamente, aquilo ou aquém se odeia no mundo sensível. Em geral, apenas reagimos, projetivamente, com nosso ódio interno, em repulsa a certos objetos e (ou) pessoas que nos provocam aversão, uma vez que, tais objetos são percebidos como concorrentes, competidores, oponentes, antagônicos, vilões, enfim, como (inimigos) ameaçadores.

Seria o ódio da mesma natureza que o medo?

Quanto a esse temor, há uma questão problemática a se pensar: podemos temer um cão feroz ou uma serpente venenosa, no entanto, podemos não os odiar, muito pelo contrário, podemos até admirá-los. No caso do ódio, ao nos afastarmos do “objeto” odiado, ele diminui ou até pode ser suprimido. Quanto ao objeto temido, ele se mantém, mesmo que estejamos afastados dele. Quando o trabalho do ódio está em ação, trata-se da referência a uma imagem que a fantasia busca “sustentar-se” em seres do mundo sensível.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Freud, S. (2010). Além do princípio de prazer. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 14, pp. 162-239). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Freud, S. (2010b). Introdução ao narcisismo. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 12, pp. 13-50). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914)        [ Links ]

Freud, S. (2010c). Luto e melancolia. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 12, pp. 170-194). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)        [ Links ]

Freud, S. (2010d). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (Dementia paranoides) relatado em autobiografia (o caso Schreber). In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 10, pp. 13-107). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1911)        [ Links ]

Freud, S. (2011b). O eu e o id. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)        [ Links ]

Jeammet, N. (2005). Ódio. In A. Mijolla (Org.), Dicionário internacional de psicanálise: conceitos, noções, biografias, obras, eventos, instituições (p. 1310). Rio de Janeiro: Imago, 2005.         [ Links ]

Menezes, L. C. (2001). O ódio e a destrutividade na metapsicologia freudiana. In L. C. Menezes, Fundamentos de uma clínica freudiana (pp. 145-155). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]



[1] Para Winnicott, “o ódio é um fenômeno relativamente sofisticado e não se pode afirmar que exista nesses estágios iniciais” No início da vida, estamos no estágio do pré-concernimento e da dependência absoluta do bebê em relação ao ambiente. Nesse momento, tem-se o amor primário e a agressividade, e não há ódio e destrutividade. iniciais” (Winnicott, 1950/2000a, p. 296, grifos nossos).


CREPÚSCULO DA VIDA

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