Arnaldo Chagas
Pasmem! Mas a Organização Mundial da Saúde
decidiu incluir o termo "velhice" como doença no CID (Classificação
Internacional de Doenças). Com essa
designação, que vale a partir de janeiro de 2022 - de velhice como
doença -, todo e qualquer idoso será enfermo. Ao se olhar no espelho e
perceber que os cabelos começam a ficar grisalhos, não terá mais sentido
afirmar: “estou entrando na velhice”, mas sim, “estou ficando doente”. Assim, a
casa dos 60 não será mais a casa da velhice, mas da "doença”.
Ora, a velhice não tem álibi, é um
fenômeno natural, contínuo, e se designada como “doença”, será similar ao
alcoolismo, uma patologia grave, progressiva e fatal. Contudo, no alcoolismo,
quando o paciente para de beber, a doença estaciona, na velhice, ao contrário,
não. Ninguém consegue parar de envelhecer, no máximo, seguindo certos cuidados
e orientações, é possível retardar o envelhecimento. A pessoa senil quando considerada
doente tem que
lidar não apenas com a velhice e finitude, mas com o estado de doença, de
anormalidade. Ser idoso, portanto, não será mais um processo natural da vida,
pois a doença é um fenômeno anômalo, antinatural.
Estar doente não significa
ser doente. Precisamos aceitar ou tolerar a velhice, a doença não. Afinal, será
a idade o principal critério para o diagnóstico “dessa doença”? Isso não
sabemos, mas o que está claro é que este diagnóstico é pessimista, cruel e ameaçador, além
de ser, no mínimo, ética e moralmente equivocado. A OMS está querendo dar uma
rasteira nos idosos, certamente. Mas afinal, porque estragar essa fase
importante da vida do ser humano, transformando-a em doença? Com essa mudança
entendemos que o normal, o saudável, será não envelhecer, e nos esforçar para
permanecermos eternamente jovem.
A fabricação dessa doença certamente envolve interesses
espúrios, econômicos, justamente porque esse mundo, do “deus mercado” e de
consumo exorbitante, seres humanos se transformam em coisas, objetos de uso e
de consumo, logo, como muitos idosos não são mais tão produtivos, como o
referido sistema demanda e impõe, acabam taxados de doentes, que precisam de
tratamento. Acredito que quem está estabelecendo a patologização da velhice não
seja um cordeirinho. Por trás dessa ideia estúpida, preconceituosa,
estigmatizante e desumana, há sempre uma indústria bilionária (farmacêutica,
por exemplo) sedenta por oferecer recursos ou artifícios para a sempre sonhada,
mas jamais alcançada, “eterna juventude”.
Se essa ideia absurda for acatada, a
velhice se apresentará como castigo, uma punição ao ser humano. De um
envelhecimento ativo, alegre e feliz, considerando sobretudo aqueles que
esbanjam independência, vitalidade e lucidez após os 60, nos transformaremos em
doentes tristes, abatidos e fragilizados. Enfrentaremos uma jornada de
enfermidade imposta. A palavra “doença” tem origem latina, em que dolentia significa “dor, padecimento”. Seremos obrigados na velhice a viver com esse pesadelo? Ora, o que me deixa
doente não é ser idoso, mas é ver crianças famintas, famílias inteiras passando
por todo o tipo de necessidade, pessoas excluídas, desprezadas, abandonadas,
desrespeitadas, violentadas de seus direitos, justamente como agora, com os
idosos.
O idoso que pode usufruir da aposentadoria,
que está relativamente bem de saúde, tem uma vida ótima, desde que respeite
seus limites físicos e psicológicos e não sacrifique o espírito, mantendo a paz
de uma vida serena. Na velhice não há mais pressões do chefe, dos colegas, nem as
rígidas obrigações que cumpria quando trabalhava. Com o ócio a seu favor, esse
idoso consegue viver muitos momentos prazerosos, simplesmente não realizando “nada”,
apenas apreciando a vida, a natureza, a convivência com quem ama. Sobram-lhe muito
mais tempo e horário livres. Não precisará constantemente dar satisfações, como
antes, a ninguém. Pode aprender a dizer não, sem culpa e a enfrentar suas
inseguranças, vulnerabilidades e dúvidas com mais tranquilidade. Milhares de idosos
que tanto trabalharam, se sacrificaram e ajudaram no desenvolvimento e
funcionamento de seu país, a partir dos 60 não são mais úteis para o sistema,
porque não produzem como antes. Num mundo perverso onde pessoas são convertidas
em peças de uma grande engrenagem, os idosos são estigmatizados, e agora, com
essa mudança da OMS, além do peso de se sentirem onerosos para o sistema de
saúde, lhes atribuem a categoria de doentes!
Os preconceitos que povoam a população
nessa faixa etária são diversos, e por essa razão acredito que tenha faltado
cautela e principalmente sensibilidade ao ministro da economia, Paulo Guedes, que
considerou um fardo o aumento da expectativa de vida e o avanço da medicina,
apontando-os como a causa da situação precária da saúde hoje no Brasil. “Todo
mundo quer viver 100, 120, 130 anos… não há capacidade de investimento para que
o estado acompanhe a busca por atendimento médico crescente…”. Afirmações
estúpidas e preconceituosas, que, a meu ver, decepciona ainda mais quando pronunciada
por um ministro, que acredita tanto no Brasil, possui conta bilionária no
exterior, em paraíso fiscal. Fardo é envelhecer num país com pessoas que mantêm
esse tipo mentalidade, que não respeitam os idosos, e não desenvolvem políticas
públicas decentes para amparar a imensa população que está envelhecendo ano a
ano cada vez mais rápido. Como diz o velho provérbio chinês: “Enquanto uns
choram, outros vendem lenço”.
Em 25 de novembro completarei 60
anos, portanto “adentrando na minha fase de enfermidade”. Vejam só que
interessante! Serei um homem doente. Um doente que malha quatro vezes por semana,
que corre de oito a dez km, duas vezes na semana, que dirige há mais de 40
anos, que faz sexo cinco vezes por semana (claro: trata-se de uma mentirinha
“machista” para os amigos “machistas”, na verdade, são de três a quatro vezes –
risos!). Continuando, serei um doente que sempre viaja de motocicleta por todo
Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Uruguai, Argentina, que escreve
livros de contos, crônicas, romances sobre amor e paixão, e mais outros cinco
livros acadêmicos, que toca piano e violão popular e às vezes canta para
espantar a saudade e a solidão. Serei o mais novo “doente” que produz roteiro e
vídeo para um canal de YouTube, que lê praticamente todos os dias, de duas a
quatro horas, que deita às 22h30 e acorda 5h45. Também converso diariamente com
a família, amigos e conhecidos, faço análise pessoal há mais de 20 anos, possuo
formação psicanalítica, e leio Freud e Lacan, lecionei em quatro universidades,
por 20 anos, concluí mestrado e doutorado, me aposentei como auxiliar de enfermagem de hospital
público, em unidade psiquiátrica, criei dois filhos, viajo para visitar amigos
em outras cidades e regiões do estado, assisto jogos de futebol, e também varro
a casa, lavo a louça, arrumo as camas, etc, etc.
Sim, a partir de janeiro poderei ser
tratado como um doente e muito do que relatei acima, que já faço, será indicado
ou aconselhado para mim. Ora, espero ser um doente saudável, ativo, alegre,
esperto. Desejo viver esses últimos anos de minha vida dignamente. Talvez o
sintoma da minha enfermidade seja o gosto que tenho pela vida, o prazer de saborear
as delícias que a vida pode oferecer, mesmo ciente da dor da existência, das
perdas pelas quais todos passamos, nossas limitações, fragilidades, fracassos,
medos e tristezas. Mas não vou me deixar abalar por isso, nem pelo meu mais
novo fardo de ser agora um doente. Lutarei até o fim de meus dias, ou enquanto
eu tiver forças, para viver com minha enfermidade, minhas loucuras do jeito que
sempre fiz e com a consciência tranquila que não prejudico ninguém, muito pelo
contrário, desejo viver cada vez mais com amor e com o coração cheio de afeto.
Não será a OMS, com essa ignomínia, que colocará mosca na minha sopa, há
isso não vai mesmo!