Powered By Blogger

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

EU MORRI

Acordei num sobressalto. O quarto estava mergulhado na penumbra, e o peso no meu peito parecia gritar algo que minha razão não queria ouvir: eu havia morrido. Por alguns segundos, o silêncio ao meu redor tornou-se ensurdecedor. Tentei me mover, mas os músculos pareciam tão mortos quanto o resto de mim. Era como se minha alma tivesse sido arrancada, mas o corpo insistisse em existir.  

Passei a mão pelo rosto, buscando no calor da pele uma resposta que me devolvesse à vida. Era real? Um sonho? Meu coração batia, mas o que importava isso? Eu sentia o toque gélido da ausência. "É assim que a morte se sente?", perguntei-me, em um diálogo íntimo que parecia ecoar por dentro.  

O cenário ao redor era familiar: minha cama, os travesseiros desalinhados, e Dolores, minha companheira, respirando suavemente ao meu lado. Ela estava lá, viva, tranquila, alheia ao turbilhão que se desenrolava dentro de mim. Toquei seu braço com cuidado, precisando sentir o mundo, confirmar que ainda fazia parte dele. Ela resmungou algo ininteligível, e esse pequeno gesto foi uma âncora: eu não estava completamente só.  

Levantei-me com dificuldade e caminhei pelo quarto, os pés descalços no piso frio. Toquei a maçaneta da porta, a estante com meus livros, o espelho. Tudo parecia carregado de uma nova estranheza. No reflexo, meus olhos estavam vivos, mas algo no fundo deles parecia vazio.  

Voltei à cama e sentei-me na beirada, as mãos apertadas contra os joelhos. "Você está vivo", repeti para mim mesmo, como uma prece, como se o som das palavras pudesse me convencer. Mas uma sombra de dúvida persistia. O sonho — ou o que quer que fosse aquilo — era tão vívido que parecia mais real do que a própria vigília.  

Sonhei que morria, e acordar foi como voltar de um lugar que não deveria conhecer. Fui tomado por uma compreensão silenciosa e inevitável: todos morremos. Alguns lentamente, outros de forma abrupta, mas a certeza do fim nos ronda, mesmo quando preferimos ignorá-la.  

Era impossível não pensar em tudo o que havia lido e aprendido. Epicuro dizia que a morte não deveria nos preocupar, porque enquanto estamos vivos, ela não existe, e quando ela chega, não estamos mais aqui. Que consolo vazio, pensei. A morte não é a ausência em si, mas o eco dela na nossa consciência, um aviso de que o tempo é uma ampulheta que nunca para.  

Naquele momento, o tempo parecia se expandir e contrair, como se o próprio universo quisesse me mostrar o que é a eternidade. Pensei nos meus amigos, nas coisas que deixei de dizer, nos gestos que não fiz. A morte não é só um fim; é também uma pergunta: "Você viveu o suficiente?"  

Levantei-me outra vez, o coração ainda acelerado, e abri a janela. O ar frio da manhã me golpeou como um tapa. Lá fora, a vida seguia indiferente. A rua começava a acordar, os pássaros cantavam sem cerimônia. Era quase ofensivo que o mundo seguisse em frente enquanto eu me debatia com o vazio.  

Olhei para Dolores novamente. Sua presença era um lembrete de que, apesar de tudo, eu ainda estava aqui. Voltei para a cama e me deitei ao seu lado, sentindo o calor de sua respiração. A morte havia me tocado, mas não me levou. Não desta vez.  

Escrever sobre isso é minha forma de continuar. Cada palavra que rabisco é uma forma de dizer à morte que ela ainda não venceu. Enquanto escrevo, estou vivo. E, por ora, isso é o suficiente.

Arnaldo Chagas

EU MORRI

Acordei num sobressalto. O quarto estava mergulhado na penumbra, e o peso no meu peito parecia gritar algo que minha razão não queria ouvir:...